A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin

14:58


                                                SINOPSE                                          

Genly Ai foi enviado a Gethen com a missão de convencer seus governantes a se unirem a uma grande comunidade universal. Ao chegar no planeta Inverno, como é conhecido por aqueles que já vivenciaram seu clima gelado, o experiente emissário sente-se completamente despreparado para a situação que lhe aguardava. Os habitantes de Gethen fazem parte de uma cultura rica e quase medieval, estranhamente bela e mortalmente intrigante. Nessa sociedade complexa, homens e mulheres são um só e nenhum ao mesmo tempo. Os indivíduos não possuem sexo definido e, como resultado, não há qualquer forma de discriminação de gênero, sendo essas as bases da vida do planeta. Mas Genly é humano demais. A menos que consiga superar os preconceitos nele enraizados a respeito dos significados de feminino e masculino, ele corre o risco de destruir tanto sua missão quanto a si mesmo.



                                                                  



                                                                               Aí está um livro que eu procrastinei pra caramba. Meu interesse em conhecer a escrita da Ursula K. Le Guin sempre foi muito grande, mas alguma coisa me punha com medo de me "aventurar" nas questões propostas por ela e nas profundas ideias da autora . Quando eu falo de questões, falo mais precisamente de A Mão Esquerda da Escuridão, já que não tenho nenhum conhecimento à cerca dos outros livros da autora. 
A Mão Esquerda da Escuridão é um livro denso, e saber isso antes de começar a leitura fez com que eu hesitasse um pouco e decidisse ler outros livros antes de começá-lo. Mas quando dei inicio à leitura, eu não poderia me perder mais na escrita habilidosa da Ursula.

"O que me pegou foi a qualidade da narrativa. Ursula se valeu da mitologia, da psicologia - toda a criatividade ao redor -, e teceu-as em uma história rara." - Frank Herbert


O livro se poupa de qualquer forma de apresentação: Não há uma explicação de mundo, títulos sociais e até mesmo termos totalmente inventados simplesmente aparecem. Mesmo com essa chuva de novas informações, o leitor não fica perdido por muito tempo.
A historia tem inicio no ponto de vista de Genly Ai, um emissário de uma federação galáctica chamada Ekumen, que propõe uma união política, cultural e comercial entre vários -ou todos- planetas, de modo que assim eles possam evoluir de forma plena.

                           A QUESTÃO DO GÊNERO                               

Genly foi enviado ao planeta Gethen, e sua missão lá é convencer os governantes a se juntarem ao Ekumen. Gethen é um planeta simples em suas ideias, mas é confuso demais para Genly, que por não aceitar de forma completa o funcionamento desta sociedade, acaba tendo dificuldades para se adaptar.
Gethenianos, Steven Celiceo Art
Os habitantes de Gethen são bem semelhantes aos seres humanos, porém são assexuados e só adquirem características femininas ou masculinas durante um período chamado kemmer, que é quando os Gethenianos estão férteis e podem se reproduzir. É unicamente no kemmer que eles tem qualquer tipo de relação sexual, e  esse período funciona como uma forma de cio, isto é, os Gethenianos ficam com pré disposição ao sexo durante todo o tempo. É interessante como a autora não mostra apenas a estranheza de Genly Ai diante dessas características alienígenas, mas também o ponto de vista Getheniano sobre Genly Ai. Para eles, Genly é uma aberração, eles entendem que o terráqueo vive no kemmer, e por isso, ele é tido como um pervertido.
Steven Celiceo Art
Durante essa descoberta que Genly enfrenta, ele tem que lidar com a ausência dessa dualidade de gênero em Gethen, e por diversas vezes acaba se prendendo à esteriótipos machistas que não se encaixam nessa sociedade.
Justamente por estar preso à essa linha de pensamento simplista, em que determinada função ou característica são atribuídas a mulher ou homem, Genly têm dificuldades para se adaptar. Além disso, é espetacular como os pensamentos ou as observações à cerca disso, feitas por Genly, são capazes de incomodar o leitor.
Ursula propõe uma sociedade desvinculada de qualquer preconceito de gênero, e mostra como Genly Ai e seu pensamento, humanos demais, são atrasados. Segundo a autora, nos anos 60, quando o livro foi escrito, discussões como essa começavam a ser levantadas, e o livro surgiu como uma forma de experimento. "O que acontece quando você tira o gênero das pessoas? O que sobra? Elas ainda seriam seres humanos? Para mim, sim."


                 AMIZADE, EXÍLIO E SOBREVIVÊNCIA             

Steven Celiceo Art
Desde os seus primeiros dias em Gethen, Genly Ai contou com o apoio de Estraven, uma figura importante no cenário político de Karhide, uma das nações Gethenianas. Porém, o líder desta nação, Argaven XV, por não concordar e nem confiar nos propósitos Ekumenicos, exilou Estraven, alegando que ele estaria conspirando contra o seu governo totalitário.
Estraven é responsável por alguns capítulos que juntos ao de Genly, formam uma espécie de relatório da missão. É muito bom ter mais um ponto de vista na historia, principalmente vindo de um Getheniano. As observações dele sobre os costumes de Genly são importantes para o leitor entender as diferenças entre os dois mundos, e até ter uma visão melhor de Gethen sobre Genly Ai.
Quando Estraven é exilado, ele continua a se informar da missão de Genly. Envolvido em várias intrigas políticas, ele vê sua ascensão em uma nação diferente.
Enquanto isso, vendo sua missão fracassar em Karhide, Genly parte para outra nação, chamada Orgoreyn, só que após ter sido envolvido em alguns problemas políticos, ele é levado como uma espécie de escravo para uma fazenda, onde é drogado e obrigado a trabalhar. Com um sentimento de responsabilidade sobre Genly, Estraven decide resgatá-lo. Essa, para mim. somada aos momentos de tensão de Genly na fazenda, foi a melhor parte do livro.
O resgate de Genly Ai e a fuga dos dois em direção à nação de Karhide rendeu ao livro diálogos fascinantes à respeito da sociedade Getheniana, das ambições de cada um e por passarem dias a fio, em fuga no clima gelado de Gethen, podemos acompanhar a luta por sobrevivência de cada um deles, isso devido ao fato do narrador ainda se alternar. 
Starsong Studio
A amizade entre Estraven e Genly é outra coisa que se desenvolve de forma magistral. Genly percebe que Estraven é uma das únicas pessoas em que ele pode confiar integralmente naquele planeta, principalmente por causa das várias intempéries enfrentadas por ele para dar sucesso à missão Ekumenica. O choque tanto cultural quanto biológico entre essas duas sociedades é um fator que, conforme o livro desenvolve, vai se atenuando. Genly cresce e aprende muito com os Gethenianos e Ursula soube retratar isso muito bem. 

"Tão profuso e original em sua inventividade quanto O Senhor dos Anéis." - Michael Moorcock

                                            CONCLUSÃO                                       


Como eu disse no início da postagem, A Mão Esquerda da Escuridão é um livro denso. A autora usa vários artifícios que sustentam sua escrita e seus experimentos sociais, mas não entrega tudo de mão beijada para o leitor. Diferente de alguns livros, este pede que o leitor use sua imaginação e adentre Gethen, assim como fez Estraven.
Gosto muito da visão que Ursula tem da ficção científica. Temos nesse livro uma introdução sensacional da autora a respeito deste gênero literário, e a vontade é dar uma pausa na leitura para aplaudi-la. Ela fala de como a ficção científica não se trata de previsões, de como o autor não é um vidente. Ficção científica é metáfora, é o reflexo fantasioso de uma realidade muito deprimente.
Admito que precisei de um esforço a mais para ler esse livro, que apesar de pequeno, tomou o dobro do tempo que eu imaginei, para ser finalizado. Creio que isso se deve justamente à esse empurrão para fora da zona de conforto. 
A Mão Esquerda da Escuridão pede um olhar mais crítico do leitor, e como a própria autora descreve ficção científica na introdução: "Ao ler um romance, qualquer romance, temos de saber perfeitamente bem que a coisa toda é absurda, e então, enquanto lemos, acreditar em cada palavra. Finalmente, quando terminarmos, podemos descobrir - se o romance for bom - que estamos um pouco diferentes do que éramos antes da leitura, que fomos, de alguma forma, transformados, como se tivéssemos conhecido um rosto novo ou cruzado uma rua que nunca cruzáramos antes. Mas é muito difícil dizer exatamente o que aprendemos, como fomos transformados." 

Essa é uma leitura transformadora, e merece a atenção até daqueles que não tem o mínimo interesse pela ficção científica. 

A FICHA 

Título: A Mão Esquerda da Escuridão
Título Original:  Left Hand Of Darkness
Autor: Ursula K. Le Guin
Capa: Pedro Inoue
Tradução: Suzana L. de Alexandria
Editora: Aleph
Ano da publicação brasileira: 2014
Ano da 1ª publicação: 1969
Páginas: 292


“A luz é a mão esquerda da escuridão e a escuridão é a mão direita da luz. Vida e morte são como amantes na unidade do êxtase - dois em um - como mãos postas, uma contra a outra, são o princípio e o fim.”

 

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